A trajetória entre querer e – descobrir – poder morar sozinha

Ao olhar para menos de dez anos atrás e me recordar de uma garota que não conseguia percorrer uma distância de 20 metros conduzindo a própria cadeira de rodas, a ideia de morar sozinha poderia soar completamente absurda. Mas esse lapso temporal foi crucial para que muitas habilidades fossem desenvolvidas. Relembrar o êxtase de conseguir andar de táxi pelas ruas de sua cidade desacompanhada, algo tão corriqueiro e comum para a maioria das pessoas, a conquista da habilitação para dirigir, a compra do primeiro (e do segundo) carro, a primeira, segunda, terceira e quarta aprovações em concursos públicos, certamente eram fortes âncoras para que essa ideia pudesse germinar na cabeça de alguém que já tinha aprendido a lidar com as frequentes estatísticas pouco animadoras.

A grande questão é que a condição humana é muito mais complexa do que pregam as simplificações reducionistas das frases motivacionais. Ainda que um indivíduo seja capaz de superar uma gama de situações adversas, pode ser difícil alterar a influência que os paradigmas tão arraigados socialmente exerçam em suas próprias decisões, o que pode desencadear o processo de auto sabotagem.

Nossa capacidade de quebrar as correntes e grilhões que construímos ao longo da vida pode ser enfraquecida ao ponto de o medo mostrar seus sinais através do nosso corpo. E o trabalho de desconstrução dessa auto sabotagem dói, às vezes até literalmente. Você precisa estar disposto(a) a conhecer todas as suas nuances e a ter coragem para assumir novas escolhas que romperão para sempre o casulo de falsa percepção de autoproteção, e dor, que essa prisão traz.

Por que, muitas vezes, temos tanta dificuldade em partir e vermos as pessoas que amamos partirem?

Temos dificuldades em aceitar que podemos ser amados ainda que as nossas asas nos levem para alguns quilômetros de distância dos que amamos. Praguejamos contra essa ideia porque fomos criados sob a crença de que quem ama não consegue viver distante. O amor fica condicionado a qual nível de dependência um ser pode ter sobre o outro. As pessoas que nos amam, baseados no desejo de proteção, podem acabar relutando perante a ideia de que aquela experiência poderia e deveria ser vivida por nós. Simplesmente pelo fato de que aquela era a sua escolha. O processo de ressignificação de pertencimento é muito complexo quando, inconscientemente, reforçamos comportamentos de vinculação e responsabilidade sobre os outros que fazem parte daquele meio.

O voo

A ideia que parecia tão distante foi criando formas, tamanho e em meados de 2014 passou a ser um sonho claro em minha cabeça. Um sonho que fazia meu coração vibrar em um misto de excitação e completa insegurança. Neste momento, já existia no horizonte uma possibilidade de morar em outra cidade e outro estado. Havia chegado a hora de um supremo desafio. Aquela hora em que cada reserva que temos é testada. Aquela hora em que a nossa fé, nossos valores, nossa paciência, nossa compaixão, nossa capacidade de resistir são todas empurradas para além dos nossos limites. E quando não sabemos lidar com essa avalanche de emoções geradas pelos nossos desejos e escolhas, precisamos ser honestos (as) conosco e admitirmos a nossa incapacidade de seguir sem ajuda especializada. É isso que permite nos agigantarmos: nos darmos a chance de que alguém realmente preparado possa nos auxiliar nesse processo de enfrentamento de nós mesmos. E eu fui presenteada com a chance de ter a assessoria de Vandilson Soares, uma das pessoas mais doces, vanguardistas e serenas que eu já pude conhecer, um psicólogo em excelência, que conduziu por um ano o processo de transformação do sonho de morar sozinha em meta e, como não poderia deixar de ser, realidade.

Fortalecida psicologicamente e planejadora incansável, rapidamente eu já estava descobrindo um novo mundo: pensando em quantidade de fios nos lençóis, na combinação dos itens para cozinha, descobrindo formas para lavar roupas delicadas (preocupação que nunca havia passado por essa cabecinha) e tentando ressignificar meu pavor por frequentar supermercados.

Finalmente, no final do mês de outubro de 2016, estavam reunidos a minha família, meu então (“noivíssimo”) namorado e meus queridos amigos e amigas para celebrar aquela etapa tão desafiadora. Estava entrando em uma viagem que eu, de maneira muito ingênua, não conseguia vislumbrar a forma profunda e intensa com a qual me transformaria.

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Descrição da imagem para cego ver: Mensagem do convidado: “Que o seu lar seja igual ao seu coração… Amamos você!!”

Uma das grandes paixões que adquiri nos últimos anos foi passar horas olhando o mar. A imensidão dele e seus mistérios têm um poder inigualável de me acalmar. E no dia seguinte, para o primeiro pôr do sol na minha casa, lá estava eu, sentada na minha varanda olhando para ele, o mar, de uma poltrona confortável. A atenção que ele roubava de mim era dividida com um céu cabalístico que anunciava uma noite quente de novembro. A melodia que vinha da praia parecia estar orquestrada com Ludovico Einaudi que tocava no meu computador. Estava completamente vazia de quaisquer outros sentimentos. Exatamente naquele momento, apenas a gratidão por poder viver a experiência conseguia me preencher de maneira inteira, sem espaços. A angústia que me corroeu nos últimos meses desaparecia como some alguma dor após o efeito de algum medicamento.

Neste momento acolhedor, lembrar que, como disse Ford “Quer você acredite que pode fazer uma coisa, ou acredite que não pode, de qualquer maneira você está certo”, fazia completamente sentido para mim. Não porque acreditar que posso voar me dará asas, mas pelo fato de que há um forte peso nas mensagens coerentes que você envia ao seu sistema nervoso, que expandem, limitam ou eliminam sua capacidade de conseguir determinado resultado.

Ficaram curiosos sobre o que aconteceu após a mudança?

Bem, dá uma canseira procurar móveis…

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Descrição da imagem para cego ver: Amanda está sentada em uma poltrona com as duas pernas para cima e com a expressão de cansaço.

E sua primeira compra pode ser apenas um cobertor…

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Descrição da imagem para cego ver: cobertor bege enrolado e ainda na embalagem

De repente você começa a cochilar em qualquer lugar…

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Descrição da imagem para cego ver: Amanda está deitada dormindo no sofá. Ao lado está a sua cadeira de rodas

E a carregar sacolas maiores que você…

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Descrição da imagem para cego ver: Amanda está na garagem de casa com uma grande sacola branca que cobre seu rosto. Atrás da cadeira de rodas há outra sacola pequena.

Sua relação com a comida muda completamente e seu coração dispara, tropeça, quase para quando o delivery chega…

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Descrição da imagem para cego ver: Amanda está em um quarto alugado pelo Airbnb abraçada a uma sacola plástica cheia de comidas.

Mas, não há nada mais gostoso do que estar naquela casinha que você mesma escolheu e arrumou!

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Descrição da imagem para cego ver: Amanda está sentada no chão ao lado da sua mala de roupas, diversas sacolas e da sua cadeira de rodas. Ela usa uma blusa branca e está soltando beijo com a mão.

Publicado por por Amanda Brito

Administradora e Especialista em Gestão Empresarial e em Educação, atua há mais de dez anos conduzindo processos de Gestão Estratégica de Pessoas, Gestão de Carreira e Desenvolvimento Humano, além de já ter coordenado grupos de trabalho sobre Equidade em ambientes corporativos. Apaixonada por transformação de pessoas, possui formação em Coaching Executivo e Life Coaching, em curso credenciado pelo ICF, e em Practitioner em PNL. Também ministra palestras e tem experiência facilitando processos em Grupos. Baiana radicada no Rio, e viajante nas horas vagas, seus pés não sabem andar nem ficar quietos.

4 comentários em “A trajetória entre querer e – descobrir – poder morar sozinha

  1. Simplesmente amando seus textos. Você é um exemplo de força e é muito válido ressaltar que essa necessidade de cessar (e lutar contra) a auto sabotagem se aplica a humanidade como um todo! Quantas vezes nos limitamos a nós mesmos! A inércia acaba exatamente quando nos movimentamos. Sucesso sempre, Amanda. Certeza que vc já foi longe! Parabéns, lindo blog.

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  2. My dear,
    Lutamos juntas, sobrepondo à coragem e ao amor que sempre nos uniu a certeza de que é melhor atirar-se a luta em busca de dias melhores, do que permanecer estáticos.
    Há os que não lutam, mas tambem não vencem…, que não sabem a dor da derrota, nem a glória de ressurgir dos escombros…
    Os que optam pela inércia ou vivem a reclamar de tudo, ao final da sua jornada aqui na terra, não agradecem a Deus pela vida, limitam-se a se desculpar por terem apenas passado por ela….
    E voce…, voce é uma constante prova do que Shakespeare um dia afirmou: “…que se pode ir muito mais longe, depois de pensar que não se pode ir mais…”
    Te amo! Orgulho em ser sua…
    …mammis!!!

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